Caxola

Idéias flutuam pela ruas da cidade. Nadam pelos ares em busca de ouvidos atentos e ansiosas por olhos curiosos. Meu prazer voluntário é capturá-las, vesti-las de sedas e traduzi-las em palavras. No Caxola, a beleza acre do cotidiano veste traje de gala.

quinta-feira, março 02, 2006

A Mulata e o Sol

O sol da manhã estende seus raios mornos por sob casebres de tijolo e cimento. Antes de alcançar o asfalto, o sol arde no morro. É lá que as pessoas acordam mais cedo. É lá que as ruelas se enchem de passos apressados e, ao mesmo tempo, de conversas de comadres, como numa avenida Rio Branco cruzando uma cidade do interior. A Rocinha esfrega os olhos e toma um café forte no botequim do Paraíba para espantar o sono.

Eu também tenho sono. Mas nem pisco, tamanho é o espanto de ver surgir em meio às ajardinadas mansões do bairro da Gávea, um amontoado de barracos cinzentos. O ônibus barulhento sobe a longa e sinuosa ladeira. A cada metro acima, o coletivo engasga mais. Parece relutar em trocar a colorida classe média pela ocre favela da Rocinha. Já eu tenho pressa. Quero sentir na ponta da língua o gosto da realidade.

Entramos cada vez mais no morro. Os jardins perfumados ficam distantes. Agora o cheiro é azedo. Tem lixo apodrecendo pelos cantos. Tem esgoto escorrendo pelo canto da rua. Estou tão absorta que não percebo a curva adiante e quase caio do banco. Volto a me acomodar no assento e espio pela janelinha uma paisagem incrível. A manobra do ônibus revela uma das vistas mais lindas do Rio. Vejo o mar imenso e azul. Os prédios luxuosos da orla acenam lá de baixo. Esqueço um pouco do cheiro do lixo.

O fim da linha do coletivo está próximo. Mas de repente o motorista pára. Vem descendo um outro ônibus, e a via, mais estreita ainda nessa curva, não permite que os dois sigam seu caminho ao mesmo tempo. Motoqueiros apressados contornam os ônibus. Os moto-táxis, meio de transporte mais usado pra ir de um lado pro outro dentro do morro, cortam a pista rasantes. São centenas de moços carregando ladeira acima e ladeira abaixo senhoritas bonitas, homens apressados, senhoras gordas e crianças agitadas. Todo mundo usa. Ninguém sente frio na barriga pela velocidade alta, ou pelas guinadas bruscas, ou então pela a ausência de capacetes.

Desço do ônibus. Finalmente. Meus pés tocam o chão da Rocinha. A cada passo concluo que caminho num planeta desconhecido. As normas são diferentes. Lei de trânsito, por exemplo, não tem. Faixa de pedestres, nem pensar. Calçada regular, impossível. Mas, como em qualquer mundo, a rocinha tem seus mcdonalds', itaús, lan houses, cabeleireiros, pizzarias. As moradias aqui são mini-edifícios de até quatro pisos. Cada andar tem uma cor, já que cada pavimento foi construído por uma família, que comprou ou alugou a laje, unidade fundiária da Rocinha.

O calor da rua se desvenda diante dos meus olhos. O fervilhar do povo se desdobra em piruetas circenses. O senhor de cabelo branco e camisa aberta canta desafinado numa curiosa máquina de caraoquê. Três pessoas assistem, sorridentes, ao show do moço. Cravado num cantinho da ruela, o bar toca samba de raiz. A mulata e sua mini-saia gingam contentes. Ninguém assiste à bela morena. Mas ela pouco se importa. O sacolejo da moça saúda o Sol que nasce por trás do morro.

O Astro-Rei larga o copo de café escuro e pega a mão de unhas vermelhas da mulher. E saem os dois rodopiando pelo morro. Como o mestre-sala e sua porta-bandeira. Como se já não houvesse perigo ou mau-cheiro. E a linda Rocinha sorri na beleza de sua gente. Na raça de quem ignora as manchetes alarmistas dos jornais e os julgamentos hipócritas de quem nunca subiu o morro. Na beleza singela de um samba e na realidade crua das vielas, a Rocinha vive.

"Tenho medo. Medo de ti, sem te conhecer, / medo só de te sentir, encravada / favela, erisipela, mal-do-monte na coxa flava do Rio de Janeiro." [Poema Favelário Nacional, de Carlos Drummond de Andrade]

Texto redigido em 11 de Abril de 2005