Caxola

Idéias flutuam pela ruas da cidade. Nadam pelos ares em busca de ouvidos atentos e ansiosas por olhos curiosos. Meu prazer voluntário é capturá-las, vesti-las de sedas e traduzi-las em palavras. No Caxola, a beleza acre do cotidiano veste traje de gala.

quinta-feira, março 02, 2006

Pára. Que eu quero descer.

Sete da matina. Calor já infernal. Oitenta viventes se acotovelam por um pedaço de pau de arara em que se segurar. Oitenta quilômetros por hora, eis a velocidade tocada. Lá de trás, espremido feito uma sardinha, um cara alto grita: “Ô motorista! Não vai parar, não? Passou meu ponto, porra!”. Ao que o piloto responde: “É nada, m’ermão! Ali não é ponto, não! Cê tá maluco?”.

Segue-se o poético diálogo. Os dois homens embezerrados testam seus gogós pra ver quem relincha com mais macheza. Por fim, talvez lembrado da máxima que diz ter o cliente sempre razão, o motorista resolve parar o coletivo. Freada brusca. Ignorando o princípio da inércia, que o projetaria metros à frente, meu corpo, compactado por muitos outros corpos, não sai do lugar.

“Acho bom parar mesmo! Da próxima vez vai ter volta”, urra o passageiro. O condutor, prestes a liberar a porta de saída, muda, então, de idéia: “Ah, vai ter volta, é? Então fica esperando aê, m’ermão!”. E segue o barco. Ou melhor, o ônibus. Vendo serem em vão seus gargarejos, o cara alto ultrapassa o mar de gente. Empurra sem dó a velhinha espantada. Carrega em sua fúria a mochila da colegial. Salta sob roleta e, espumando, ata o pescoço do motorista entre seus dedos. O ônibus ziguezagueia sob a pista estreita de mão-única.

Encolhida perto duma janela, a menina de cabelos pretos começa a chorar de medo. É então que tudo cessa. E, talvez lembrando da máxima que diz sermos gente civilizada, o motorista aciona o botão e ejeta o rapaz de sangue fervente. No interior da condução, dois segundos de silêncio constrangido.

“Armaram um berreiro infernal, faca, pau, cano de ferro e quebra-quebra, correndo descontrolados, contagiando a massa com excitação, feito estouro de boiada. Naquele momento, olhou pela janela do xadrez e viu o pelotão de Choque enfileirado na porta de fora do pavilhão, de máscara ninja cobrindo o rosto, escudo, metralhadora e a cachorrada. Nos andares, agitados como formigas antes do temporal, os detentos queimavam e destruíam o que estivesse ao seu alcance.” [Drauzio Varella, em Estação Carandiru]

Texto redigido em 25 de Setembro de 2004 ,
no Rio de Janeiro