Crônica de um coração partido
O coração sangrou até a última gota. Oco, bamboleou por vielas de má sorte. Acotovelou-se no balcão do boteco. Lançou ao garçom uma derradeira súplica: “Desce a pinga.” Bebeu. E como bebeu. Até murcharem os beiços. Até incharem os olhos. E, na calçada, o coração adormeceu. Seco e pálido.
Altivo, fez-se surdo ao perceber a saudade a sussurrar palavras do passado. Nem sei nem vi. Meu tempo é aqui. E fincou os cotovelos na mesa: “Desce um tiragosto.” Comeu. E como comeu. Até murchar a fome. Até inchar a pança. E, na espreguiçadeira, o coração adormeceu. Gordo e farto.
Mas, se amor não enche barriga, em barriga cheia não vinga o amor. E, digerindo, o coração esvaiu-se. Deitou. Com o vazio de uma caverna nos olhos, fitou o teto. Horas passearam pelos ponteiros do relógio. Insônia.
A cada estalo do relógio um pensamento. Cada gesto faria ao contrário. Cada dia viraria do avesso. Cada palavra leria no espelho. Cada verso reescreveria. Até o mundo colocaria de ponta cabeça se no tempo pudesse voltar. E sentiu saudade.
Uma velha senhora com olhos de maresia ronronou: “Chamou?” Ele franziu a testa. “Saudade?” Ela sorriu. “Quem mais seria, filho?” E o coração abriu-se: “Sinto falta dela.” Com a naturalidade de quem deseja saúde a alguém que espirra, a saudade falou: “Ora, veja só, e ela de ti!” Arrebatou-se o coração.
Ele saiu em louca corrida. Tocou a campainha. Ao ver surgirem dois olhos de amêndoa na fresta da porta nada pode dizer além do evidente: “Senti saudades.” Ela abriu a porta. Deixou verter um sorriso de lua minguante. Ele colou os lábios nos dela. Abraçado à sua metade, o coração palpitou. Pulou no peito. E, inteiro, adormeceu.
Leia também O ofício da dor
8 Comments:
O final é de deixar a gente esperançoso sobre o tal de amor. Felizes felicidades em 2011, Carol.
Beijo
ler o teu blog sempre me faz querer enterrar o meu!
É muito talento pra escrever bonito!
é poesia e quase música. mais que música. é coisa bonita de palavras cantando num ritmo de rima sem rumo. o rumo sem rumo da coisa bonita.
parabéns pelo texto.
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