Caxola

Idéias flutuam pela ruas da cidade. Nadam pelos ares em busca de ouvidos atentos e ansiosas por olhos curiosos. Meu prazer voluntário é capturá-las, vesti-las de sedas e traduzi-las em palavras. No Caxola, a beleza acre do cotidiano veste traje de gala.

domingo, janeiro 02, 2011

Crônica de um coração partido

O coração sangrou até a última gota. Oco, bamboleou por vielas de má sorte. Acotovelou-se no balcão do boteco. Lançou ao garçom uma derradeira súplica: “Desce a pinga.” Bebeu. E como bebeu. Até murcharem os beiços. Até incharem os olhos. E, na calçada, o coração adormeceu. Seco e pálido.

Altivo, fez-se surdo ao perceber a saudade a sussurrar palavras do passado. Nem sei nem vi. Meu tempo é aqui. E fincou os cotovelos na mesa: “Desce um tiragosto.” Comeu. E como comeu. Até murchar a fome. Até inchar a pança. E, na espreguiçadeira, o coração adormeceu. Gordo e farto.

Mas, se amor não enche barriga, em barriga cheia não vinga o amor. E, digerindo, o coração esvaiu-se. Deitou. Com o vazio de uma caverna nos olhos, fitou o teto. Horas passearam pelos ponteiros do relógio. Insônia.

A cada estalo do relógio um pensamento. Cada gesto faria ao contrário. Cada dia viraria do avesso. Cada palavra leria no espelho. Cada verso reescreveria. Até o mundo colocaria de ponta cabeça se no tempo pudesse voltar. E sentiu saudade.

Uma velha senhora com olhos de maresia ronronou: “Chamou?” Ele franziu a testa. “Saudade?” Ela sorriu. “Quem mais seria, filho?” E o coração abriu-se: “Sinto falta dela.” Com a naturalidade de quem deseja saúde a alguém que espirra, a saudade falou: “Ora, veja só, e ela de ti!” Arrebatou-se o coração.

Ele saiu em louca corrida. Tocou a campainha. Ao ver surgirem dois olhos de amêndoa na fresta da porta nada pode dizer além do evidente: “Senti saudades.” Ela abriu a porta. Deixou verter um sorriso de lua minguante. Ele colou os lábios nos dela. Abraçado à sua metade, o coração palpitou. Pulou no peito. E, inteiro, adormeceu.

Leia também O ofício da dor

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8 Comments:

Anonymous Anônimo said...

O final é de deixar a gente esperançoso sobre o tal de amor. Felizes felicidades em 2011, Carol.
Beijo

03 janeiro, 2011 14:44  
Blogger Ana Reczek said...

ler o teu blog sempre me faz querer enterrar o meu!
É muito talento pra escrever bonito!

04 janeiro, 2011 18:54  
Blogger Cuca Linhares said...

é poesia e quase música. mais que música. é coisa bonita de palavras cantando num ritmo de rima sem rumo. o rumo sem rumo da coisa bonita.
parabéns pelo texto.

08 janeiro, 2011 19:35  
Anonymous Anônimo said...

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17 janeiro, 2011 23:18  
Anonymous Anônimo said...

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17 janeiro, 2011 23:35  
Anonymous Anônimo said...

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18 janeiro, 2011 02:58  
Anonymous Anônimo said...

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18 janeiro, 2011 03:04  
Anonymous Anônimo said...

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21 janeiro, 2011 12:32  

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