Caxola

Idéias flutuam pela ruas da cidade. Nadam pelos ares em busca de ouvidos atentos e ansiosas por olhos curiosos. Meu prazer voluntário é capturá-las, vesti-las de sedas e traduzi-las em palavras. No Caxola, a beleza acre do cotidiano veste traje de gala.

quinta-feira, agosto 30, 2007

Daquele tipinho

Não sou do tipo que reclama. Juro. Culpada é a fumaça, esta ranzinza. Vilão é o asfalto que bate duro no solado de minhas botas. E o vômito das sarjetas enfaradas. O mendigo roto. A mulher gorda.

Da água, a última gota. Deles reclamo. Culpo-os.

Não sou do tipo que jura. Insisto. O tranco me fez jurar agüentá-lo. Mal levantar do tombo e já acertar o passo. Jurei persistir. Culpada é a promessa de tornar-me mestre de obras. Peão iludido sou.

Sem direitos trabalhistas, sou menos funcionária que as engrenagens oleosas da impressora do jornal.

Não sou do tipo que disfarça. Culpado é o burburinho de matracas agourentas no metrô. Vilões são os fiapos de vida nos olhos do menino de rua. O caminhar do coto. A velha corcunda. A curva ao final da ladeira, que me faz escorregar pelo banco gorduroso do ônibus.

Igual a óleo quente, desvio do nó na garganta. Música nos ouvidos para surdez. Livro nos olhos para cegueira. Canivete na bolsa para prevenir.

Não sou do tipo que escorrega. Porém – inevitável – tropecei na caudalosa cidade. Por minutos suspensos no ar, ensurdeci para a melodia. Vi nuances de caleidoscópio. Fugiu o raciocínio, e esqueci como caminhar em linha reta.

Não sou do tipo que foge. Mas – entendam-me – fugiria. E não precisaria mais culpados do que um teclado encardido para dedilhar reportagens e trocados para garantir o pão integral de cada dia.

E uma varanda. Para regar as violetas que, como eu, resistem à cidade de sombras.

Acreditar na existência dourada do sol. Mesmo que em plena boca nos bata o açoite contínuo da noite. Arrebentar a corrente que envolve o amanhã. Despertar as espadas, varrer as esfinges das encruzilhadas. Meu companheiro tá armado até os dentes. Já não há mais moinhos como os de antigamente. [O cavaleiro e os Moinhos, de Elis Regina]

3 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Carol,

Se eu te disser que estou numa fase de questionamentos e desilusões você acreditaria? Acho que o profissional sempre se questiona quando se vê de alguma forma estagnado. E as pessoas, principalmente aquelas com olhos 'sonhadores', deixam de perceber os 'moinhos'. Talvez eles ainda estejam lá, assim como sempre estiveram, mas nossa percepção pode ter mudado.

Lave o rosto, esfregue os olhos...deixe Billie Holiday sussurrar mais altos em seus ouvidos...quem sabe esse não seja um bom remédio?

03 setembro, 2007 08:19  
Anonymous Anônimo said...

Carolzinha, menina! Saudade de ti!
Acho que vou a Sampa nas férias. Se isso se confirmar (as férias, não a viagem... hehe) aí eu te ligo pra gente tentar se ver aí na capital do concreto, blz? Te cuida, bjo!

23 outubro, 2007 11:34  
Blogger Rê Piza said...

Caracol, como você escreve bem...nunca tinha lido um texto seu não jornalístico. É forte, ritmado e maduro. Parabéns!
E poste mais, vou passar por aqui sempre.
Beijocas!!

17 novembro, 2007 23:14  

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