Em preto e branco
Cutuca o aro dos óculos ovais. Os olhos, apertados, brilham castanhos. Nos cantinhos, se amassam desavergonhadas rugas. Sinal dos tempos. Dentes bem alinhados. Hoje ela sorri pouco. Diz andar esquecida.
Inconformada, contesto. Peço que esqueça essa história de brancos. Duvido. Encho-a de minhas dúvidas. Ela me preenche de histórias em preto e branco. Deliciosas nuances cinzas. A vida, sem tecnicolor, brilha na cabeça dessa teimosa.
‘Viu como tu lembra de um monte de coisas?’ Ela franze a testa. Olha de soslaio para o lado. Quase lhe arranco um ‘é verdade’. Quase. A pimentinha resiste. Insiste andar esquecida.
‘Pois, como foi mesmo que tu conheceu o vô?’. Semblante radiante me responde: ‘Ah, ele trabalhava numa oficina a duas quadras do ateliê de costura. Um dia, me convidou para beliscar batatinhas com coca-cola. Sempre adorei batatinha. Principalmente as bem torradas. Aceitei. Um dia. Duas semanas. Um mês. Quarenta anos. Esperto, não?’
‘Quer dizer que a família Dias descende de batatinhas com coca-cola?‘ Ela me mira com aqueles olhinhos matreiros. Como quem se cuida para não cair em uma traquinagem de criança. Conhece bem a neta. Conheço bem a vó. Passa a língua nos lábios fininhos. E arremata: ‘Toda quarta-feira ele me pagava um sorvete de morango!’
6 Comments:
Carolzinha, seus textos estão cada vez mais bonitos!
Saudades, Oli
Menina,
que maravilha os teus escritos! Aqui, já passeei por silêncios encharcados de não-ditos, por versos suicidas, por gentes à margem da 'festa nacionalista' do futebol... E por essa vó traquina e tão esperta e seu semanal sorvete de morango! rsrs Estou encantada com tuas palavras, 'Poeta Nua'!
=)
Lygia disse:
Oi,Mimosa,
Achei lindo o teu texto. É legal quando a gente tenta resgatar a história das pessoas queridas, ainda mais quando se faz da forma como fizeste, com emoção e arte. Beijos da Vó Lygia (a outra Vó)
Vovó querida! (viram só? minha vovó lê meu blog. que linda!)
Muito obrigada pela visita e pelo comentário carinhoso. Como eu sempre digo, é tudo resultado dos bons genes.
Obrigadá, vó! Te amo muito :)
NOSSA!
Tu tá escrevendo muito... tua sensibilidade não tem limites, fico cada vez mais orgulhoso de te ver assim :D
Sabe que sempre pensei em escrever uma espécie de "memórias" da minha vó. Já conversei com ela durante horas sobre como ela conheceu meu vô e como era naquele tempo. É impressionante como tudo era diferente, acho que seria um registro fantástico...
Preciso fazer isso! Beijão!
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