Caxola

Idéias flutuam pela ruas da cidade. Nadam pelos ares em busca de ouvidos atentos e ansiosas por olhos curiosos. Meu prazer voluntário é capturá-las, vesti-las de sedas e traduzi-las em palavras. No Caxola, a beleza acre do cotidiano veste traje de gala.

domingo, fevereiro 23, 2014

Jornalista é Deus?


Não, não é. Jornalista é jornalista. Não é manifestante. Não é polícia. Não é bandido.

Uma das minhas tarefas como consultora de comunicação consiste em formar porta-vozes. Começo o treinamento perguntando qual a impressão deles sobre os jornalistas. “Eles não escrevem o que falamos. Distorcem a informação.” Peço exemplos. Nunca apareceu um que, de fato, caracterizasse falha de conduta. Confundem edição, ordem do dia e noticiabilidade com manipulação. São pessoas bem informadas e competentes em sua área de atuação, mas que não tomaram contato com conceitos de jornalismo. Se eles não tomaram, percebi dia desses, dificilmente a maioria da população brasileira tomou. Ou seja, ninguém sabe para que servem jornalistas e uma imprensa livre. Possivelmente, pouca gente vê significado em um jornalista ser preso, agredido, morto.

E quando um é assassinado, como foi o cinegrafista Santiago Andrade, enquanto segurava sobre o ombro sua câmera durante um protesto no Rio, questiona-se: “Jornalista acaso é Deus para sua morte ser tratada com tanto destaque?” Não, não é Deus. Toda violência e todo crime devem ser investigados, combatidos e punidos dentro da lei. Mas preservar o trabalho e a vida do jornalista é indispensável para que violências e crimes sejam investigados, combatidos e punidos, dentro da lei. Quando morre um jornalista, a democracia sangra. Quando se prende um jornalista no exercício da profissão, subtrai-se do público o direito de acesso à informação isenta.

O jornalista não opta por estar no fogo cruzado. Não tem lado. Não tem, muitas vezes, sequer o equipamento certo para se proteger. Ele está sim em uma categoria à parte, ainda que não acima nem abaixo de ninguém. A função dele é ser os olhos e os ouvidos do povo. Fui repórter por sete intensos anos e garanto: é esse o espírito que move quem vai às ruas cobrir chacinas, acidentes e tantos outros acontecimentos de que qualquer ser humano de mente sã tomaria distância.

Jornalistas vêm sendo hostilizados por gente que sequer lê o jornal do dia. Não recebem críticas, mas sim ataques gratuitos, baseados na reprodução de um discurso vazio, segundo o qual qualquer veículo de comunicação mente, manipula e oprime. Nessa visão doente, os repórteres são a encarnação do mal, os agentes a serem xingados, surrados e eliminados, por um bem maior. Não se sabe qual. Temos de lutar por uma imprensa mais plural? Sem dúvida. Mas isso não se faz aniquilando aquela que aqui está.

Some-se a isso a natureza truculenta das polícias no Brasil, resumida na fala do governador paulista Geraldo Alckmin: “Quem não reagiu está vivo.” Diante de um cenário de ebulição popular que ninguém até agora conseguiu compreender em sua totalidade, Alckmin e outros governantes agem por desespero e, na tentativa de preservar a própria imagem em ano eleitoral, dão ordem à polícia para atirar antes, perguntar depois. Criam absurdos como a tal “Tropa do Braço”, formada por policias especializados em dar gravatas. Segure a mão espalmada na frente do seu pescoço e aperte. Ruim? Imagine isso com a força de um impiedoso lutador de jiu-jitsu.

A polícia não respeita e não preserva os jornalistas. Quebraram intencionalmente um sem número de câmeras e celulares ao longo dos últimos protestos. Lembram-se da mentalidade equivocada sobre o jornalismo de que falei no início do texto? É ela quem fala aqui mais uma vez. Banco de dados da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) mostra que houve 119 violações contra jornalistas desde 11 de junho de 2013, sendo 92 cometidas pela polícia e 26 por manifestantes. O levantamento não inclui dados de ontem, quando cinco colegas foram presos e ao menos dois agredidos pela PM quando cobriam um protesto no centro de São Paulo.

Um dos detidos foi meu marido, Paulo Toledo Piza, repórter experiente, especialmente na cobertura de conflitos e casos policiais. Em meio a uma confusão entre manifestantes e a PM, fez o que se faz nesses casos: foi para perto da parede de um prédio e agachou, para se proteger. A polícia encurralou justamente os que estavam fugindo do conflito e os deteve “para averiguação”. A alegação, lemos depois no noticiário: “suspeita de prática black bloc”. Paulo mostrou o crachá de repórter para os policiais, explicou que estava ali a trabalho. A resposta: “Foda-se.”

Foi liberado só 30 minutos depois.

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