Anjo negro
Cruzei com ele quando subia o último quarteirão antes de alcançar minha rua. Eu trazia na sacola pão, queijo e mortadela. Nos ombros, o cansaço de onze horas de trabalho. Era tarde já.
Ele mal me viu. Eu nunca deixaria de notá-lo.
Com o focinho rente ao chão, parava em cada canteiro a buscar não sei o que. Pequeno, preto e com as orelhas apontadas para o céu escuro. Tufos de pelo branco denunciavam sua idade.
Meu coração derreteu-se. “Vem cá, vem cá. Toma um naco de mortadela. Pega um pouco de pão.” Assoviei. Bati a palma da mão nos meus culotes.
Aproximou-se, cheirou a comida, a dispensou. Interessou-se em mim. Cheirou minha perna e minhas mãos. Abanou de leve a cauda. Deixou-me tocar o alto de sua cabeça. Tudo com comedimento.
Convidei-o a andar comigo. “Vou levá-lo pra casa”, pensei. Enumerei: tenho uma boa almofada que lhe servirá de cama, preparo arroz e peixe e amanhã vamos ao veterinário. Se estiver bem de saúde, buscamos um lar definitivo. Está feito.
Meu cérebro corria. Meu companheiro andava como um senhorzinho. Não percebi quando me tomou a dianteira. Íamos os dois. Pela rua escura.
Mal reparei quando ele virou à direta em duas ruas. Podia seguir reto. Mas virou – antes de eu esboçar direcionamento. Foi dar na frente da minha casa.
Incrédula, peguei a chave para abrir o portão. Lançou-me o olhar solene de quem encerra uma missão. Acelerou o passo e dobrou a esquina. Ignorou meus chamados.
Eu pensava que eu o protegia. Era ele quem velava meu caminho.
"So why, why would you talk to me at all. Such words were dishonorable and in vain. Their promise as solid as a fog. And where was your watchman then?" [Guardian, de Alanis Morissette]
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