Caxola

Idéias flutuam pela ruas da cidade. Nadam pelos ares em busca de ouvidos atentos e ansiosas por olhos curiosos. Meu prazer voluntário é capturá-las, vesti-las de sedas e traduzi-las em palavras. No Caxola, a beleza acre do cotidiano veste traje de gala.

quarta-feira, agosto 07, 2019

O moranguinho

Fui ontem ao Instituto Chão, aqui em SP. Eles reúnem e vendem alimentos orgânicos cultivados por pequenos produtores. Comprei uma caixinha de morangos.

Hoje lavei um a um os moranguinhos, coloquei numa tigela bonita, branca e azul. Cada morango tinha um tamanho, um tom de vermelho. Dois apodreceram na caixa.

Levo à mesa e sento diante daquele buquê.

Não lembro quando comi morangos pela última vez. Talvez dentro de algum bombom, envolto em brigadeiro. Sei que desde o começo do inverno namoro morangos no mercado. Aquela caixa enorme, grandes bolas vermelhas, inchadas, a ostentar um brilho parelho e estático. Cheguei a colocá-las mais de uma vez no carrinho. Devolvi. Morangos de supermercado me lembram minhas colegas de Porto Alegre depois de uma sessão de bronzeamento na máquina.

Eis-me aqui diante dos moranguinhos orgânicos. Vieram do interior de Minas, li na caixa. Sítio Primavera.

Sofro de transtornos alimentares desde os 10 anos de idade. Estou em processo de cura há 10 anos. Parte do meu tratamento é sentir os alimentos, antes de mastigá-los. Sou aquela pessoa estranha que cheira quase cada garfada – e só depois põe na boca.

Sem que eu aproximasse o rosto, o cheiro dos moranguinhos sobre a mesa serpenteia em minhas narinas. Não invade. Gentilmente se mostra, como a água de um mar manso chega à praia e nos molha os dedos dos pés.

Eu sorri.

Escolhi o menorzinho deles. Vermelho claro. Desbotado perto do caule. O caule cortado sem simetria. Será que arrancaram do pé com as mãos? Ou tiraram com uma faca? Não parece o corte preciso de uma tesoura. Cada caule remanescente tem uma forma única.

Trago o moranguinho à boca e, mesmo ele sendo pequeno, mordo só a metade.

Caldo, maciez, doçura. A textura. Ah, a textura.

Penso na lista de agrotóxicos liberados no país, no sorriso de escárnio dos agro-políticos, em quem chama veneno de defensivo.

O moranguinho do Sítio Primavera é um rebelde entre morangos parrudos, reluzentes e padronizados do supermercado. O moranguinho, chego a pensar, está em extinção. Em poucos anos pensarão que morango é um sabor de iogurte.

Meus olhos se enchem de lágrimas.

Não só de tristeza. Também de tristeza, mas não só. O moranguinho é delicioso. Como com presença e devoção. Sinto cada sementinha, cada suculência. Experimento diferentes formas de extrair da fruta o cabinho. Arrisco colocar um inteiro na boca. Desvendo com língua e dentes cada parte dele.

De repente, não há mais nada no mundo: só esta garota e seus moranguinhos. Envolvo a tigela com a mão direita. Com a mão esquerda, pinço mais um. E agradeço. De coração inteiro.


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