O consumo do mendigo. Ou o mendigo consumido.
Noite. No supermercado, reúno das prateleiras sopa dietética, carne sem proteína e pão sem carboidrato. De braços dados com a cesta de compras, cumprimento a moça de coque no cabelo postada atrás da esteira. Um burburinho das senhoras leva meu olhar até o caixa do lado. Um mendigo. Maltrapilho e cheirando a urina. Não pede esmolas. Não importuna clientes. Não esconde latas de milho debaixo da blusa. O mendigo, como eu, traz, na cestinha, sua compra: um litro de aguardente. Na mão cinzenta, tem moedas contadas.
Indiferente aos cochichos, ele larga as pratinhas no balcão. A caixa cutuca as moedas com a ponta dos dedos. Confere o pagamento. A menos de dois metros, um homem sisudo de terno preto escanea os movimentos do mendigo, como a prever uma ação animalesca a qualquer momento. A moça joga os tostões na gaveta. “Próximo, por favor”. Na fila do mendigo, não há ‘próximo’.
A garrafa, de mãos dadas com o rapaz de roupas rotas, se retira do recinto. Pago minhas comidas-de-vento. Penduro uma sacola em cada braço. Rumo para casa. No caminho, ainda vejo o homem acomodar-se sobre alguns papelões e sorver satisfeito seu primeiro gole incandescente de cachaça. Aperto o passo.
A noite passa. Pra mim. E pro mendigo. Acordo apressada. Subo no ônibus. O trânsito pára. Anda. Pára. Anda. Pára. No meio da rua, atrapalhando o fluxo, uma ambulância. Estico o pescoço. Um homem caído. Três outros socorrendo. Reconheço aquele casaco puído. Reconheço aqueles pés imundos. Reconheço, por fim, aquela garrafa. Que agora jaz vazia. Do lado do corpo de seu companheiro mendigo.
Indiferente aos cochichos, ele larga as pratinhas no balcão. A caixa cutuca as moedas com a ponta dos dedos. Confere o pagamento. A menos de dois metros, um homem sisudo de terno preto escanea os movimentos do mendigo, como a prever uma ação animalesca a qualquer momento. A moça joga os tostões na gaveta. “Próximo, por favor”. Na fila do mendigo, não há ‘próximo’.
A garrafa, de mãos dadas com o rapaz de roupas rotas, se retira do recinto. Pago minhas comidas-de-vento. Penduro uma sacola em cada braço. Rumo para casa. No caminho, ainda vejo o homem acomodar-se sobre alguns papelões e sorver satisfeito seu primeiro gole incandescente de cachaça. Aperto o passo.
A noite passa. Pra mim. E pro mendigo. Acordo apressada. Subo no ônibus. O trânsito pára. Anda. Pára. Anda. Pára. No meio da rua, atrapalhando o fluxo, uma ambulância. Estico o pescoço. Um homem caído. Três outros socorrendo. Reconheço aquele casaco puído. Reconheço aqueles pés imundos. Reconheço, por fim, aquela garrafa. Que agora jaz vazia. Do lado do corpo de seu companheiro mendigo.
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago. Dançou e gargalhou como se ouvisse música. E tropeçou no céu como se fosse um bêbado. E flutuou no ar como se fosse um pássaro. E se acabou no chão feito um pacote flácido. Agonizou no meio do passeio público. Morreu na contramão atrapalhando o tráfego. [Construção, de Chico Buarque]
2 Comments:
teste
Carol,
Que beleza és uma grandiosa escritora. Vamos editar um livro?
Bjo com amor Pity
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