Pulmões

Ronca o motor e me estralam as costas de cansaço. Jogo-me no banco de parco estofamento. Espicho os olhos para fora da vidraça. Alguém grita e cerra os punhos: “Abre, motorista!” Inútil: ergue o dedo indicador do volante e balança a unha roída da direita para a esquerda – não.
Poeira de raiva do lado de cá. Fuligem de carbono do lado de lá. Resto de ânimo cá. Saudades de lá.
No balançar de um coletivo centenário, saracoteio até minha razão de ficar longe de lá, aqui. Falta asfalto no buraco. Sobra, no canteiro de flores cinzas. No caminho, um cemitério enterra vítimas do ar sujo, do congestionamento, da grosseria. Confesso certa inveja passageira.
Água suja, caída em bicas do desperdício, escorre pela sarjeta. Rejeitada, a mãe Terra chora em chuvas pontuais. Seis horas. Moças de botas de vinil se achegam às avenidas. Trabalho. Trabalho. Cada um com o seu.
Meu encantamento se dilui em ônibus lotado e vômito de canos de descarga. Pobreza – de bolso e espírito. Cidade madrasta.
Trabalho. Necessária lida de quem sonha. E, entre uma falta de ar e outra, sonho.