Caxola

Idéias flutuam pela ruas da cidade. Nadam pelos ares em busca de ouvidos atentos e ansiosas por olhos curiosos. Meu prazer voluntário é capturá-las, vesti-las de sedas e traduzi-las em palavras. No Caxola, a beleza acre do cotidiano veste traje de gala.

terça-feira, março 21, 2006

Errar é santo

O moço era devoto de Santo Antônio. Rezava piamente para o padroeiro do bom-casório. O curioso é que, em verdade, não rezava para achar seu par perfeito. Rezava porque morria de medo de ficar calvo. Talvez achasse que o santo, careca, compreendesse a sua aflição. E rezava para que não lhe caíssem os cabelos. Fazia promessas. Acendia velas. E Santo Antônio atendia as preces do moço. Sempre.

Certo dia, uma moça apaixonou-se pelo moço. Mais que se apaixonou. A moça amou o moço. Amou até mesmo os cuidados anti-calvice do moço. O moço amou a moça em igual proporção. Ou, pelo menos, foi o que disse à moça. E a moça acreditou. A moça, açucarada de amor, viu nele o moço de sua vida. E, a exemplo do amado, passou a rezar para Santo Antônio. O pedido era um só: o casório – o quanto antes e para sempre.

Era reza pra cá. Reza pra lá. Terços, rosários e escapulários em punho. Santo Antônio andou ocupado naqueles tempos. São muitos solteirões a socorrer. E um só santo para atender todos eles. Problemas estruturais celestiais. Deus anda estudando um remanejo de santos para esse departamento. O caso é que, com tamanha demanda, Santo Antônio acabou cometendo um engano: trocou os pedidos.

Assim mesmo, como fazem os atendentes com você no McDonald’s. Você reclama: ‘Olha, pedi Cheddar McMelt!’, e te respondem ‘Tem certeza que não era McFish?’. Desse jeito. Santo Antônio arranjou um bom casamento para o moço – o quanto antes e para sempre. MAS, erro número um, com uma outra, que não a moça. A moça, desconsolada, não pôde acreditar. Colocou o santo de cabeça pra baixo. Tirou-lhe o bebê do colo. Afogou-o num copo de água. Castigado, Santo Antônio lembrou que devia algo à moça. Sem pestanejar, erro número dois, concedeu o pedido.

A moça morreu aos 97 anos. Solteira. Virgem. E com todos os fios de cabelo sobre a cabeça.

sexta-feira, março 17, 2006

O consumo do mendigo. Ou o mendigo consumido.

Noite. No supermercado, reúno das prateleiras sopa dietética, carne sem proteína e pão sem carboidrato. De braços dados com a cesta de compras, cumprimento a moça de coque no cabelo postada atrás da esteira. Um burburinho das senhoras leva meu olhar até o caixa do lado. Um mendigo. Maltrapilho e cheirando a urina. Não pede esmolas. Não importuna clientes. Não esconde latas de milho debaixo da blusa. O mendigo, como eu, traz, na cestinha, sua compra: um litro de aguardente. Na mão cinzenta, tem moedas contadas.

Indiferente aos cochichos, ele larga as pratinhas no balcão. A caixa cutuca as moedas com a ponta dos dedos. Confere o pagamento. A menos de dois metros, um homem sisudo de terno preto escanea os movimentos do mendigo, como a prever uma ação animalesca a qualquer momento. A moça joga os tostões na gaveta. “Próximo, por favor”. Na fila do mendigo, não há ‘próximo’.

A garrafa, de mãos dadas com o rapaz de roupas rotas, se retira do recinto. Pago minhas comidas-de-vento. Penduro uma sacola em cada braço. Rumo para casa. No caminho, ainda vejo o homem acomodar-se sobre alguns papelões e sorver satisfeito seu primeiro gole incandescente de cachaça. Aperto o passo.

A noite passa. Pra mim. E pro mendigo. Acordo apressada. Subo no ônibus. O trânsito pára. Anda. Pára. Anda. Pára. No meio da rua, atrapalhando o fluxo, uma ambulância. Estico o pescoço. Um homem caído. Três outros socorrendo. Reconheço aquele casaco puído. Reconheço aqueles pés imundos. Reconheço, por fim, aquela garrafa. Que agora jaz vazia. Do lado do corpo de seu companheiro mendigo.

Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago. Dançou e gargalhou como se ouvisse música. E tropeçou no céu como se fosse um bêbado. E flutuou no ar como se fosse um pássaro. E se acabou no chão feito um pacote flácido. Agonizou no meio do passeio público. Morreu na contramão atrapalhando o tráfego. [Construção, de Chico Buarque]

terça-feira, março 14, 2006

Todos, severinos

Filhos do mesmo solo. Terra de nossa gênese. E de nosso juízo final. Seja ela chão rachado do sertão. Seja ela asfalto cinza de metrópole. Somos todos severinos. Vendendo a alma por um pão francês. Vendendo a alma por um Porsche prateado. Somos todos severinos. Vivemos como severinos. E como severinos morreremos. Um dia cairemos, todos, severinos. Suspiraremos a última lástima. Sorriremos a derradeira alegria. E sucumbiremos ao funéreo fim. Num determinismo poético. Num tapa de luva do destino. Que nos iguala, severinos.

“Somos muitos Severinos iguais em tudo e na sina: a de abrandar estas pedras suando-se muito em cima, a de tentar despertar terra sempre mais extinta, a de querer arrancar alguns roçado da cinza.” [Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto]

quarta-feira, março 08, 2006

Oito de março. Dia de quê?

Depois de meses sem receber flores, ganhei, hoje, uma rosa. Não foi presente de nenhum apaixonado, nem mesmo de um amigo. Foi de um garoto de mais ou menos 20 anos, sentado atrás de uma esteira rolante, vestindo um uniforme verde listrado e com o cabelo emplastado de gel. Depois de registrar um pacote de pão de sanduíche, 250g de queijo mussarela, uma caixa de lenços de papel, 700g de tomate e uma lata de leite condensado, o garoto estendeu uma mão para receber o pagamento pelas compras e a outra para oferecer-me a rosa: “Obrigado pela preferência, senhora, e parabéns pelo seu dia!”.

Saí do supermercado com uma sacola em cada mão e com a rosa debaixo do braço. Um dia só meu. Um dia, dos 365 outros, dedicado aos seres humanos de salto alto e saia rodada. Segui caminhando até minha casa. Corações vermelhos decoram as lojas, fotos de mulheres-deusas colorem os outdoors. Em todos os anúncios, mulheres à venda, afinal nesse dia, somos artigo de luxo. Mas sabe de uma coisa? Não quero flores, roupa, perfume ou maquiagem. Quero martelo, computador, estetoscópio e mala de ferramentas.

O dia da mulher surgiu dentro de partidos socialistas russos, europeus e americanos, onde as operárias tinham um dia do mês para discutirem questões como a miséria, o voto e a guerra. O Oito de Março nasce, na verdade, de inúmeras lutas das mulher de esquerda, em várias datas. Fina ironia a comercialização desse dia, feito para marcar a presença da mulher trabalhadora e contrária às forças do capitalismo. Já que todos os holofotes estão sob nós, vamos aproveitar a oportunidade e berrar por mais vergonha na cara e menos demagogia.

Por mulheres e por homens.
Texto publicado em 09 de março de 2004

quinta-feira, março 02, 2006

O calor de um coração de pedra

Ela é feita de prata. Esculpida em um bloco compacto de metal pesado. O Artesão-mor criou suas formas com precisão. Nada sobra. Nada falta. Em seus olhos colocou o brilho vago de uma noite sem lua. E em suas mãos, restos da luz de um vaga-lume. Forjada a marteladas, a bela sustenta sua pose altiva com a leveza de uma pluma ao vento. Com os pés fincados no centro da cidade, lá está a estátua.

Para compensar o sorriso estrelado, o Artesão-mor colocou-lhe no peito um coração de pedra. Disse-lhe, ainda, que jamais poderia amar ou chorar. Por mais que transeuntes jogassem à estatua beijos de amor, ela não poderia corresponder. Por mais que os pombos lhe lançassem bombardeios, não poderia lançar mão de seu estilingue contra as aves. Era de impecável beleza. E de intocável perfeição. Intocável. O Artesão-mor tratava de guardar sua mais preciosa obra em um alto pedestal.

Freqüentadora de pracinhas pacatas, eu passei, dia desses, em frente a estátua. Arregalei os olhos. Agucei os ouvidos. Escutei um sussurro. Não distingui as palavras. Estava a dois passos da escultura. Espalmei minha mão atrás da orelha direita. “Liberte-me, menina de olhos d’água”. Fitei seu rosto sereno. A voz angustiada não era ouvida no semblante tranqüilo. Estiquei minha mão, na tentativa de ajudar a estátua a sair de seu palanque. E eis que, ao toque de meus dedos, ela se move. Como num encanto, a bela prende firme minha mão. Dá-lhe um longo beijo. Com a mornidão dos beijos de amor. Sorri plena. Segura a barra de sua túnica e desce majestosa. Assim vai-se a intocável peça. Rumo ao breu esfumaçado da noite.

Texto redigido em 28 de Julho de 2005, no Rio de Janeiro

Menino não brinca de boneca

Menino não brinca de boneca. Mentira. Mentira. Mentira. Os rapazes, aliás, são os mais hábeis manipuladores desse tipo de brinquedo. Batem o olho no delicado regalo e abrem, ansiosos, a caixa de papel. Tomam a nova diversão nos braços. Enrolam-lhe os cachos na ponta dos dedos. Avermelham-lhe o rosto com pó de pimenta. Vestem-lhe de finos linhos e indubitáveis esperanças. Erguem do chão seus pés e transformam seu estômago numa cama elástica. Até que, como em qualquer brincadeira, se cansam. Miram os olhos vítreos da doce boneca e neles já não vêem luz. Ajeitam-lhe o vestido. Amarram-lhe o laço no cabelo. E guardam a bela na prateleira.

Cerro meus olhos, descoro minhas maçãs do rosto, esvazio meus lábios. Jogo longe minha roupa de retalhos e penduro os sapatinhos de verniz. Assim é mais fácil perceber que não sou de pano. Nem de porcelana. E, mais importante, meu coração não é de plástico.

“Now you've got some diamonds and you will have some others / But you'd better watch your step / Or start living with your mother / So don't play with me, 'cause you're playing with fire / So don't play with me, 'cause you're playing with fire” [The Rolling Stones]

Texto redigido em 08 de Outubro de 2004, no Rio de Janeiro

Entra na roda morena pra ver. Ô balancê, balancê.

Sentada em frente à tela azul da televisão. Os dedos magrinhos bicam o controle remoto. Filme requentado. Novela pastelão. Pastor evangélico. Enlatado ianque. Cutuca mais uma vez o controle e eis o melhor programa da tarde: desliga. Coça a canela direita com o calcanhar esquerdo. Calça os chinelos almofadados. Lá de fora, uma batida cadenciada adentra a janela aberta. Ela esfrega os olhos. Os chinelos a arrastam até o parapeito. A mão espalmada atrás da orelha espreita o som. Violão de sete cordas, cavaquinho, reco-reco, cuíca e pandeiro denunciam: é samba. O bloco se espalha pela praça. Foliões jogam seus confetes.

Enquanto ela se debruça na janela, eu, encolhida, espio a folia sentada num banco de madeira. Levanto um pouco o olhar e encontro a colombina de cabelos brancos. Com um xale e seus 80 anos sob os ombros ela dança. Simplesmente dança. Sozinha na sala de seu apartamento térreo. Os chinelos acolchoados devem estar inquietos. E saudosos de um carnaval. Um carnaval em que não existia ainda chinelos de pelúcia. Eram as sapatinhas de lantejoulas da colombina que giravam no salão.

Encantada, sorrio sozinha no meio da praça lotada. Os olhos dela projetam nos meus suas lembranças. Balançando os ombros de um lado para o outro e apontando um dedinho para o céu, ela sorri: “Vai dançar, menina!” Tiro do bolso a serpentina azul e jogo para minha amiga colombina. De sua janela, ela lança-me confetes. Desenrolo-me dos meus medos e sou mais uma dentro do bloco.

“Chik chik chik chik chik bum! / Chik chik chik chik chik bum! / Pare o bonde, pare o bonde / Que inda vai entrar mais um” [marchinha de 1941, de Antônio Almeida]

Texto escrito em 30 de Janeiro de 2005, no Rio de Janeiro

Reclame

Um dia você vê um cara estirado no chão. Um tiro. Sem suspeitos. Você fica de boca aberta. Mas ninguém nota, é só mais um, ou melhor, menos um. Todo mundo segue caminhando, como se a calçada fosse um rio ligeiro, sempre atrasado pra chegar não se sabe onde. E a cena se repete. Milhões de vezes, sem que ninguém se importe em, ao menos, tapar o rosto do vivente, ou melhor, do morrente.

Não há tempo. Não há espaço. Tudo flutua num universo paralelo. Longe de mim. Longe de ti. Você bem que gostaria de ajudar. Mas está ocupado demais. Você tem horários a cumprir. Você tem metas a atingir. Uma delas é um dia ter tempo pra fazer o que você gostaria de estar fazendo agora. Mas esse dia nunca chega.

Então você continua boiando nas águas turvas desse rio maluco. E se conformando com absurdos. E concordando com tiranias. E reclamando do mau tempo. Pois chove. E esse sim é um grande problema. Digno de ser discutido em elevadores e mesas de botequim, onde se reúne a intelectualidade do lugar comum. O que nos interessa se tem um corpo jazendo na rua? Não é o nosso. Hoje.

Texto redigido em 02 de Maio de 2004, no Rio de Janeiro

Pro Santo

Noite. Eu espero o ônibus. A parada está estrategicamente colocada em frente a um boteco pra lá de bagaceiro, no coração da Lapa. Ao final do expediente, todo aquele povo que ganha por gota de suor se reúne no botequim, pra beber cerveja em copo de plástico e brindar ao novo salário mínimo, que garante mais uma bandeja de torresmo frito em óleo reciclado. Eu, abraçada a meus livros, observo, quietinha, a malandragem. Meu expediente também chegou ao fim.

Um cara, com seus 50 anos, camisa aberta até o umbigo e corrente dourada no pescoço, remexe no bolso e joga um punhado de moedas no balcão: “Me vê uma breja!” Ele segura o copo com firmeza e vai até a porta do bar. Lá estou eu. E penso, invariavelmente: “Pronto! O tio vai me passar uma conversa! O que mais eu quero?”

O Fulano chega de mansinho, observa o movimento da rua e vira, sem cerimônia um terço da cerveja do copo na sarjeta. Ele sorri sorrateiro e, entre os dentes, balbucia: “Pro santo!” Contente, volta ao boteco e sorve, satisfeito, a sua gelada. Com a bênção de Deus.

Texto redigido em 08 de Maio de 2004, no Rio de Janeiro

Cores ao vento

Entardece. O sol encolhe-se aos poucos para detrás dos morros do Rio de Janeiro, como uma criança sapeca brincando de esconde-esconde. A luz preguiçosa recolhe-se resignada. Por hoje já cumpriu sua função. Enquanto os raios mornos despedem-se das ruas, os passos apressados as preenchem. Milhares de pares de sandálias, tênis e sapatos brancos tomam a calçada. É hora de ir pra casa. A mulher gorda aquece o leite no fogão de bocas cariadas. O cheiro acre toma o ar do barraco. Hoje, no café da tarde, não tem pão. Não hoje. Hoje é dia de cerveja e samba bom. Moedas contadas. A escola cospe meninos agitados. Tchau, até segunda-feira. As crianças correm pelas vielas. Despacham suas mochilas. Apanham seus brinquedos de papel de seda. Todos a seus postos. Ainda sobra uma nesga de sol. Translúcidas à luz do sol do entardecer, as pipas ganham o céu, colorem a favela cinzenta. Na força dos meninos equilibristas que bamboleiam nas lajes dos barracos e empunham suas pipas azuis-céu-de-fevereiro, o morro mostra que existe. O morro, última parada do sol, resiste.

Texto redigido em 05 de Junho de 2004, no Rio de Janeiro

Pára. Que eu quero descer.

Sete da matina. Calor já infernal. Oitenta viventes se acotovelam por um pedaço de pau de arara em que se segurar. Oitenta quilômetros por hora, eis a velocidade tocada. Lá de trás, espremido feito uma sardinha, um cara alto grita: “Ô motorista! Não vai parar, não? Passou meu ponto, porra!”. Ao que o piloto responde: “É nada, m’ermão! Ali não é ponto, não! Cê tá maluco?”.

Segue-se o poético diálogo. Os dois homens embezerrados testam seus gogós pra ver quem relincha com mais macheza. Por fim, talvez lembrado da máxima que diz ter o cliente sempre razão, o motorista resolve parar o coletivo. Freada brusca. Ignorando o princípio da inércia, que o projetaria metros à frente, meu corpo, compactado por muitos outros corpos, não sai do lugar.

“Acho bom parar mesmo! Da próxima vez vai ter volta”, urra o passageiro. O condutor, prestes a liberar a porta de saída, muda, então, de idéia: “Ah, vai ter volta, é? Então fica esperando aê, m’ermão!”. E segue o barco. Ou melhor, o ônibus. Vendo serem em vão seus gargarejos, o cara alto ultrapassa o mar de gente. Empurra sem dó a velhinha espantada. Carrega em sua fúria a mochila da colegial. Salta sob roleta e, espumando, ata o pescoço do motorista entre seus dedos. O ônibus ziguezagueia sob a pista estreita de mão-única.

Encolhida perto duma janela, a menina de cabelos pretos começa a chorar de medo. É então que tudo cessa. E, talvez lembrando da máxima que diz sermos gente civilizada, o motorista aciona o botão e ejeta o rapaz de sangue fervente. No interior da condução, dois segundos de silêncio constrangido.

“Armaram um berreiro infernal, faca, pau, cano de ferro e quebra-quebra, correndo descontrolados, contagiando a massa com excitação, feito estouro de boiada. Naquele momento, olhou pela janela do xadrez e viu o pelotão de Choque enfileirado na porta de fora do pavilhão, de máscara ninja cobrindo o rosto, escudo, metralhadora e a cachorrada. Nos andares, agitados como formigas antes do temporal, os detentos queimavam e destruíam o que estivesse ao seu alcance.” [Drauzio Varella, em Estação Carandiru]

Texto redigido em 25 de Setembro de 2004 ,
no Rio de Janeiro

Cabelo Duro

Te olha no espelho. Péra. Não tem um por perto? Tudo bem. O reflexo na tela do computador também vale. Aposto um saco de jujubas que a primeira mirada foi nas tuas melenas. E elas, invocadas com teus constantes xingamentos, ondularam ainda mais diante da olhadela. E tu segues rançando.

Mas, diacho, quem disse que fio de cabelo é linha reta? Que lei impõe pena de morte aos elétricos fugitivos da glosna? Já sei. Tu leste na Nova, não foi? Homens, a Vip publicou, não é mesmo? Sei, querida, a Estilo enumerou as técnicas de extermínio de cachos, certo?

Aliviemos a barra da [minha amada] mídia. Desde a primeira aula de balé, meninas aprendem a emplastar o cabelo para livrar-los dos frisos. Desde a primeira domingueira de aniversário, meninos aprendem oferecem suas franjas às caprichadas lambidas de vaca.

Por que, hein? Cabelo esticado lá tem ritmo ou molejo? Fio escorrido não ginga nem baila. Aos lisos e, principalmente, às lisas: não entendam como ofensa ou tampouco como despeito. Amo meu cabelo duro. É isso mesmo. Abro parênteses. Pra dizer que me amarro na minha bagunça capilar. Meus castanhos fios são extensões fiéis dos nós dentro de minha caxola. É como se meus pensamentos, tontos, não coubessem no cérebro e pulassem cegos para o abismo de meus ombros. Amo meu cabelo duro. Fecho parênteses.

Já sentaste na última fileira do ônibus? Notaste como o vento adentra o coletivo pelas ventarolas e musica os passos de caracóis dançantes? Reparou no viço negro de pêlos rústicos? Sem luzes artificiais. Com sombras genuínas.

Vês aquele sorriso satisfeito espelhado na tela do pc? É tua raiz crespa que te acena. Ou então, possível é, ser apenas minha imaginação recém expulsa de um fio enrolado.

"Você ri da minha roupa/Você ri do meu cabelo/Você ri da minha pele/Você ri do meu sorriso/A verdade é que você/Tem sangue crioulo/tem cabelo duro/Sarará crioulo" [Olhos Coloridos, de Macau]
Texto redigido em 30 de Novembro de 2004

A Mulata e o Sol

O sol da manhã estende seus raios mornos por sob casebres de tijolo e cimento. Antes de alcançar o asfalto, o sol arde no morro. É lá que as pessoas acordam mais cedo. É lá que as ruelas se enchem de passos apressados e, ao mesmo tempo, de conversas de comadres, como numa avenida Rio Branco cruzando uma cidade do interior. A Rocinha esfrega os olhos e toma um café forte no botequim do Paraíba para espantar o sono.

Eu também tenho sono. Mas nem pisco, tamanho é o espanto de ver surgir em meio às ajardinadas mansões do bairro da Gávea, um amontoado de barracos cinzentos. O ônibus barulhento sobe a longa e sinuosa ladeira. A cada metro acima, o coletivo engasga mais. Parece relutar em trocar a colorida classe média pela ocre favela da Rocinha. Já eu tenho pressa. Quero sentir na ponta da língua o gosto da realidade.

Entramos cada vez mais no morro. Os jardins perfumados ficam distantes. Agora o cheiro é azedo. Tem lixo apodrecendo pelos cantos. Tem esgoto escorrendo pelo canto da rua. Estou tão absorta que não percebo a curva adiante e quase caio do banco. Volto a me acomodar no assento e espio pela janelinha uma paisagem incrível. A manobra do ônibus revela uma das vistas mais lindas do Rio. Vejo o mar imenso e azul. Os prédios luxuosos da orla acenam lá de baixo. Esqueço um pouco do cheiro do lixo.

O fim da linha do coletivo está próximo. Mas de repente o motorista pára. Vem descendo um outro ônibus, e a via, mais estreita ainda nessa curva, não permite que os dois sigam seu caminho ao mesmo tempo. Motoqueiros apressados contornam os ônibus. Os moto-táxis, meio de transporte mais usado pra ir de um lado pro outro dentro do morro, cortam a pista rasantes. São centenas de moços carregando ladeira acima e ladeira abaixo senhoritas bonitas, homens apressados, senhoras gordas e crianças agitadas. Todo mundo usa. Ninguém sente frio na barriga pela velocidade alta, ou pelas guinadas bruscas, ou então pela a ausência de capacetes.

Desço do ônibus. Finalmente. Meus pés tocam o chão da Rocinha. A cada passo concluo que caminho num planeta desconhecido. As normas são diferentes. Lei de trânsito, por exemplo, não tem. Faixa de pedestres, nem pensar. Calçada regular, impossível. Mas, como em qualquer mundo, a rocinha tem seus mcdonalds', itaús, lan houses, cabeleireiros, pizzarias. As moradias aqui são mini-edifícios de até quatro pisos. Cada andar tem uma cor, já que cada pavimento foi construído por uma família, que comprou ou alugou a laje, unidade fundiária da Rocinha.

O calor da rua se desvenda diante dos meus olhos. O fervilhar do povo se desdobra em piruetas circenses. O senhor de cabelo branco e camisa aberta canta desafinado numa curiosa máquina de caraoquê. Três pessoas assistem, sorridentes, ao show do moço. Cravado num cantinho da ruela, o bar toca samba de raiz. A mulata e sua mini-saia gingam contentes. Ninguém assiste à bela morena. Mas ela pouco se importa. O sacolejo da moça saúda o Sol que nasce por trás do morro.

O Astro-Rei larga o copo de café escuro e pega a mão de unhas vermelhas da mulher. E saem os dois rodopiando pelo morro. Como o mestre-sala e sua porta-bandeira. Como se já não houvesse perigo ou mau-cheiro. E a linda Rocinha sorri na beleza de sua gente. Na raça de quem ignora as manchetes alarmistas dos jornais e os julgamentos hipócritas de quem nunca subiu o morro. Na beleza singela de um samba e na realidade crua das vielas, a Rocinha vive.

"Tenho medo. Medo de ti, sem te conhecer, / medo só de te sentir, encravada / favela, erisipela, mal-do-monte na coxa flava do Rio de Janeiro." [Poema Favelário Nacional, de Carlos Drummond de Andrade]

Texto redigido em 11 de Abril de 2005

quarta-feira, março 01, 2006

Première

O novo Caxola estréia em ritmo de 'relembrar é viver'. Já já, novos textos sairão do forno. Por enquanto, aqui estão os mais comentados do Caxola I. O endereço antigo não funciona mais. Agora, o nosso lugar - meu e do Caxola - é aqui. Anote no guardanapo de papel: www.caxola.blogspot.com

Sinta-se em casa!