Caxola

Idéias flutuam pela ruas da cidade. Nadam pelos ares em busca de ouvidos atentos e ansiosas por olhos curiosos. Meu prazer voluntário é capturá-las, vesti-las de sedas e traduzi-las em palavras. No Caxola, a beleza acre do cotidiano veste traje de gala.

quarta-feira, setembro 12, 2012

Dentro da caixa

Há dois anos aquela caixa jazia em um canto do quarto. Os primeiros doze meses foram em frente a uma estante de livros. Tornou-se incômoda na hora em que decidi buscar um CD da Carmen Miranda desaparecido. Tenho gosto por música antiga. Carmen é minha favorita.

Lá estava o CD. Arredei a caixa um pouco mais e por lá ela ficou. Depois de tropeçar nela uma, duas, três vezes, decidi empurra-la para debaixo da escrivaninha.

Escondida, por lá ela passou mais um ano. Esqueci sua existência. Ontem à noite, após meses afastada de meus escritos, resolvi sentar à escrivaninha. E bati a canela na caixa. Ora! O que isso ainda está fazendo aqui? Fechada, do jeito que chegou. Eu a trouxe para casa em 3 de setembro de 2010, dia em que deixei meu emprego anterior. E nunca a abri.

Foi naquele emprego que comecei a fazer reportagens de política e onde cobri minha primeira eleição. Não há nada mais irresistível para alguém que esteja convencido a viver de contar histórias. Política é ódio, paixão, traição, reconciliação, volta e reviravolta. Enfim, novela.

Foi como me tornei uma repórter de rua – função mais árdua e mais prazerosa do jornalismo. Você nunca almoça, mal pisa na redação e dita o texto para o editor (com título, subtítulo e vírgulas) pelo telefone, segundos depois de o entrevistado terminar de falar. Uma insana delícia.

Abri a caixa. Jornais, bloquinhos, documentos, cópias de entrevistas e rascunhos de reportagens. Fui separando tudo em três pilhas: ‘lixo’, ‘guardar’ e ‘talvez guardar’. Meio maquinalmente. Pilha de lembranças. Pilha de lambanças.

Até que parei. Em meio a uma dezena de papéis, encontrei uma folha dobrada ao meio. Eram duas palavras dando o mote da reportagem. Uma explicação sobre o evento. E meu nome entre parênteses ao final do parágrafo. Minha primeira pauta de política.

Era fevereiro e fazia sol em São Paulo. Minha tarefa: ir atrás do prefeito em uma agenda oficial para repercutir uma denúncia de corrupção. Não fazia ideia de por onde começar. Senti frio na barriga. Um medo danado de falhar. Nenhum rosto familiar entre os colegas. Que gente séria! Olhos e ouvidos atentos, um bom editor e, ao fim, tudo certo. Disseram que eu tinha jeito para política. E não saí mais da área – na qual jamais pensara em trabalhar.

Continuei dedilhando as folhas e encontrei um recorte de jornal com a primeira reportagem sobre o tal caso de corrupção. Meu coração parou. O texto era assinado pela jornalista que se tornou, meses depois, meu maior exemplo de repórter: obstinada, incansável, insaciável. E ela é, até hoje, o meu modelo. A vida me deu a chance de tornar o ídolo uma amiga. Confesso que, apesar da intimidade, ainda acontece de eu estar com ela e me sentir como a ganhadora de alguma promoção da rádio para jantar com Mick Jagger. Uma coisa louca.

Se algo naquela caixa devia se salvar da reciclagem eram aquele recorte e aquela pauta surrada. Juntei os dois, peguei um saco plástico e guardei os papéis bem esticados dentro dele. Gosto de olhar para eles. Ficarão aqui em cima da escrivaninha. Para lembrar, a cada dia: sempre é hora de recomeçar. Mesmo que os joelhos tremam. E a boca seque. Coragem.

[Publicado originalmente em Adelaides. Leia outros textos aqui]