Caxola

Idéias flutuam pela ruas da cidade. Nadam pelos ares em busca de ouvidos atentos e ansiosas por olhos curiosos. Meu prazer voluntário é capturá-las, vesti-las de sedas e traduzi-las em palavras. No Caxola, a beleza acre do cotidiano veste traje de gala.

segunda-feira, janeiro 24, 2011

Lua e seus olhinhos azuis procuram um lar


Oi, meu nome é Lua. Mesmo com a poupança dolorida, sentei aqui para escrever minha história. Tenho menos de 2 meses de vida, mas nesse tempo vivi muitas e muitas aventuras. Como gata de rua, corria, rolava e pulava por aí. Até que um dia fui parar no meio de uma avenida movimentada. Não vi se foi um carro ou uma bicicleta, mas algo enganchou no meu rabo e puxou com muita força. Só puder correr para fugir do pior. Um pedaço do meu querido rabo ficou para trás. Com muita dor, deitei num gramado e fechei meus olhinhos.

Até que apareceu um bicho grande e babão e ficou olhando pra mim. A dona dele se abaixou para ver o que ele xeretava. E deu de cara comigo. Fiquei com medo daqueles dois. E soltei meu rugido de leão. Mas a moça foi corajosa e não se assustou. Me enrolou num paninho e me levou até um hospital. Debaixo do braço dela, me senti segura. Ela repetia sem parar: “Vai ficar tudo bem, vai ficar tudo bem.” E eu acreditei.

No hospital, a veterinária disse que eu precisaria amputar o rabo, para evitar uma infecção. Fiquei meio chateada. Ela prometeu que não ia doer nada e o melhor: eu poderia ter uma vida normal, sem limitações. Fiquei bem feliz.

Hoje recebi alta do hospital e fui para a casa de um dos meus cuidadores. Aqui tenho muito carinho e comida gostosa, mas preciso de um lar definitivo. Conte para seus amigos. Vai que um deles se apaixona por mim ; )

Sei que muitos vão se interessar - afinal quem resiste a uma gata como eu? Podem escrever para a moça que me achou (e dona desse blog que invadi, a propósito). Deixe um comentário aí embaixo que ela entra em contato rapidinho.

Miau!

Esse orelhudo aí do lado foi quem me encontrou no meio do gramado. Pretendo, agora, reconsiderar essa história de que cachorros são inimigos de gatos. Apesar da cara de bobo, ontem ele foi o meu herói.






domingo, janeiro 02, 2011

Crônica de um coração partido

O coração sangrou até a última gota. Oco, bamboleou por vielas de má sorte. Acotovelou-se no balcão do boteco. Lançou ao garçom uma derradeira súplica: “Desce a pinga.” Bebeu. E como bebeu. Até murcharem os beiços. Até incharem os olhos. E, na calçada, o coração adormeceu. Seco e pálido.

Altivo, fez-se surdo ao perceber a saudade a sussurrar palavras do passado. Nem sei nem vi. Meu tempo é aqui. E fincou os cotovelos na mesa: “Desce um tiragosto.” Comeu. E como comeu. Até murchar a fome. Até inchar a pança. E, na espreguiçadeira, o coração adormeceu. Gordo e farto.

Mas, se amor não enche barriga, em barriga cheia não vinga o amor. E, digerindo, o coração esvaiu-se. Deitou. Com o vazio de uma caverna nos olhos, fitou o teto. Horas passearam pelos ponteiros do relógio. Insônia.

A cada estalo do relógio um pensamento. Cada gesto faria ao contrário. Cada dia viraria do avesso. Cada palavra leria no espelho. Cada verso reescreveria. Até o mundo colocaria de ponta cabeça se no tempo pudesse voltar. E sentiu saudade.

Uma velha senhora com olhos de maresia ronronou: “Chamou?” Ele franziu a testa. “Saudade?” Ela sorriu. “Quem mais seria, filho?” E o coração abriu-se: “Sinto falta dela.” Com a naturalidade de quem deseja saúde a alguém que espirra, a saudade falou: “Ora, veja só, e ela de ti!” Arrebatou-se o coração.

Ele saiu em louca corrida. Tocou a campainha. Ao ver surgirem dois olhos de amêndoa na fresta da porta nada pode dizer além do evidente: “Senti saudades.” Ela abriu a porta. Deixou verter um sorriso de lua minguante. Ele colou os lábios nos dela. Abraçado à sua metade, o coração palpitou. Pulou no peito. E, inteiro, adormeceu.

Leia também O ofício da dor

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