Caxola

Idéias flutuam pela ruas da cidade. Nadam pelos ares em busca de ouvidos atentos e ansiosas por olhos curiosos. Meu prazer voluntário é capturá-las, vesti-las de sedas e traduzi-las em palavras. No Caxola, a beleza acre do cotidiano veste traje de gala.

sexta-feira, abril 25, 2008

Problema meu

Lá vem mais um. Meio mamulengo, meio encachaçado. Inteiro desinibido. "Dona repórti, quem foi que matou a menina, hein?", escapa dentre dentes amarelados em meio a uma baforada ébria. Aperto os lábios. Encolho os ombros. "Sei não, senhor. Quem sabe é Deus", respondo sem querer ouvir a ladainha decorada que se segue, obrigatoriamente. Ele tem lá sua tese, claro. E ela acaba com brados raivosos de "assassino". No melhor dos desfechos.

Por certo confundiu-me com um púlpito para seu discurso. Justiça. Moral. Freud. E sai satisfeito com seu feito. Arrasta as chinelas para junto de seus pares. Preguiçosas panças, monótonas aposentadorias, intervalos para o almoço, mentiras ao patrão e bolos de laranja que vovó esqueceu no forno. Reúnem-se todos para ver a maçaneta da porta envidraçada do distrito policial em que se investiga o crime do momento. Atentos. A postos. Nunca se sabe do que uma maçaneta é capaz.

Gira a maçaneta. Acende o pau de luz de uma equipe de televisão. Rebuliço. Pode ser o papa a sair da delegacia. Ou a Mulher Melancia. Quem quer que seja ganhará, com sorte, uma saraivada de xingamentos. Sem ela, de pedras.

Brigam aqui por um crime que não cometeram ou sofreram. Por uma dor que - garanto por tudo o que presenciei - não sentiram. Ninguém chora fantasiado de caveira, Roberto Carlos ou Bin Laden. Ninguém sofre enebriado por cachaça. A bebida apaga.

Mas, pelos holofotes do programa de TV favorito, aceitam a dor que lhes mandaram sofrer. E se enjaulam em uma ferocidade produzida. Anti-natural.

Nas suas casas, a tosse da mãe fica mais feia e o boletim do filho, mais vermelho. Resolvem o problema de qualquer um, menos o deles. Enquanto as contas se acumulam por debaixo da porta.

Meu coração parece que perde um pedaço, mas não me leve a sério. Passou este verão. Outros passarão. Eu passo. Não se atire do terraço, não arranque minha cabeça da sua cortiça. Não beba muita cachaça, não se esqueça depressa de mim. [Leve, de Chico Buarque]