Caxola

Idéias flutuam pela ruas da cidade. Nadam pelos ares em busca de ouvidos atentos e ansiosas por olhos curiosos. Meu prazer voluntário é capturá-las, vesti-las de sedas e traduzi-las em palavras. No Caxola, a beleza acre do cotidiano veste traje de gala.

quarta-feira, novembro 21, 2007

Aos 70. E com uma ruga na testa

Vontade de abandonar meu corpo colado à cama. Evitar a inútil guerra: quadril versus jeans. Minhas calças não me contêm. Virei conjunto universo. Excesso de curvas e complexos. Carrego meus pés brancos pra fora das cobertas. E rastreio o caminho do banheiro.

De estômago vazio, cabelos secos e roupas no chão, tomo coragem para fazer pesar meu corpo sobre a balança. Lépido ponteiro pula de cem em cem gramas. Imploro que pare. Responde que não. E cumpre. Me culpa: toma o que merece por tanto comer. Setenta quilos. Cravados.

Ontem – há dois meses – falou cinqüenta e oito. Hoje, setenta. Nenhum a mais. Ou (quem dera) a menos. Espio a menina no espelho. Perfeita pintura de Botero. Em exatos um metro e cinqüenta e seis. Vontade de me morder. Morrer.

Aproximo o nariz estreito do espelho. A ponta arrebitada quase grudada à superfície. Lá está. Bela cara sulista. Folha de violeta nos olhos. Galho de cerejeira nos cabelos. A beira do vigésimo terceiro aniversário, a pele, antes apessegada, precisa de chá de camomila. Debaixo dos olhos ovais, tintura negra de olheiras.

Escondida entre uma imperfeição e outra. Sulcada na testa. Como testemunho de tudo o que faz erguer minhas sobrancelhas. Mesmo não sendo muito. Mania de garota curiosa. Com razão, ela desponta. Faceira e sem medo, brota minha primeira ruga na testa. Preocupo-me.

As coisas que eu sei de mim tentam vencer a distância. E é como se aguardassem feridas numa ambulância. As pobres coisas que eu sei podem morrer, mas espero como se houvesse um sinal. Sem sair do amarelo. [Transversal do Tempo, de João Bosco e Aldir Blanc]