Caxola

Idéias flutuam pela ruas da cidade. Nadam pelos ares em busca de ouvidos atentos e ansiosas por olhos curiosos. Meu prazer voluntário é capturá-las, vesti-las de sedas e traduzi-las em palavras. No Caxola, a beleza acre do cotidiano veste traje de gala.

sexta-feira, junho 11, 2010

O ofício da dor

A dor vem de muito. A conta-gotas. Bate à porta. Nenhum som lá dentro. Do lado de fora, a dor dói. Sem resposta, resigna-se. Vem o tempo. Leva a dor para passear. “Acalma-te, vai passar.” Mal sabe a moça. Uma vez nascida, a dor precisa de um coração para cumprir sua missão. Doer. A dor escolheu o coração da moça.

O passado teima. Ilude a dor. “Era ele e ponto final, lembra?” Sorrisos. Cirandas. Lembranças. Mão dedilha as costas dele. Dedos se enroscam no braço dela. Sem chão. Sem norte. Entregue à sorte. Deixada a ele. Ânsia. Suspiro.

Boca murcha sorri. A moça aceita resistir. Ferrenhamente, luta. Por capricho, muda. Pelo amor, tudo. Salva-vidas do próprio coração, mergulha em lembranças. Agarra o passado pelos cotovelos. Debate-se para trazê-lo à tona. Ofega.

Com olhos de maré baixa, ele a tudo observa. Receio. Inércia. “Ela é forte”, pensa. “Saberá trazer de volta sozinha o amor sumido no mar.” Ela bate pernas e braços num balé de franco desespero. O coração lhe pesa nas costas. Fraquejam os calcanhares. Falham os joelhos. Arfa.

Sem alarde, a dor avizinha-se. Rasteja entre grãos de areia – tantos quanto as tentativas da moça de desafogar o passado. Aproveita-se dos tornozelos bambos da garota. E pisa-lhe no dedo mindinho. Dor.

Raiva. A dor finca as garras nos tornozelos da menina. E sobe. Pé-ante-pé. Unha-ante-unha. Fere onde toca. E toca cada centímetro daquele corpo que um dia a ele pertenceu. Pernas, quadris, braços, costas, barriga, peito. Ali se esconde. Olha para cá. Olha para lá. Ninguém. A porta do coração bem diante dos olhos da dor.

Cansou de bater à porta. E ver o coração emudecer-se fingindo surdez. Fôlego. Impulso. Num golpe cego, a dor quebra a maçaneta. Invade propriedade dele, o coração dela. Gemido. A dor sangra o amor. Fim.

It's that ole devil called love game. Gets behind me and keeps giving me that shove again. Putting rain in my eyes, tears in my dreams and rocks in my heart. It's that sly ole-sun-of-a-gun again. He keeps telling me that I'm the lucky one again. But I still have that rain. Still have those tears. And those rocks in my heart. [That ole devil called love, de Billie Holiday]

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