
Cutuca o aro dos óculos ovais. Os olhos, apertados, brilham castanhos. Nos cantinhos, se amassam desavergonhadas rugas. Sinal dos tempos. Dentes bem alinhados. Hoje ela sorri pouco. Diz andar esquecida.
Inconformada, contesto. Peço que esqueça essa história de brancos. Duvido. Encho-a de minhas dúvidas. Ela me preenche de histórias em preto e branco. Deliciosas nuances cinzas. A vida, sem tecnicolor, brilha na cabeça dessa teimosa.
‘Viu como tu lembra de um monte de coisas?’ Ela franze a testa. Olha de soslaio para o lado. Quase lhe arranco um ‘é verdade’. Quase. A pimentinha resiste. Insiste andar esquecida.
‘Pois, como foi mesmo que tu conheceu o vô?’. Semblante radiante me responde: ‘Ah, ele trabalhava numa oficina a duas quadras do ateliê de costura. Um dia, me convidou para beliscar batatinhas com coca-cola. Sempre adorei batatinha. Principalmente as bem torradas. Aceitei. Um dia. Duas semanas. Um mês. Quarenta anos. Esperto, não?’
‘Quer dizer que a família Dias descende de batatinhas com coca-cola?‘ Ela me mira com aqueles olhinhos matreiros. Como quem se cuida para não cair em uma traquinagem de criança. Conhece bem a neta. Conheço bem a vó. Passa a língua nos lábios fininhos. E arremata: ‘Toda quarta-feira ele me pagava um sorvete de morango!’