Caxola

Idéias flutuam pela ruas da cidade. Nadam pelos ares em busca de ouvidos atentos e ansiosas por olhos curiosos. Meu prazer voluntário é capturá-las, vesti-las de sedas e traduzi-las em palavras. No Caxola, a beleza acre do cotidiano veste traje de gala.

segunda-feira, setembro 25, 2006

Negócios à parte

Dediquei três horas do domingo a me pendurar nas sombrancelhas do espirituoso governador paulista. A pauta de pergunta única foi o de menos. Em visita ao Arquivo do Estado, ele se diverte. Ex-presidente da Arena e auto-declarado defensor da democracia, Lembo não exige questões elaboradas para se mostrar.

Examina com aqueles grandes olhos pretos um título de eleitor de 1881. O dono do documento: Manoel Souza de Borba Júnior, 38 anos, com instrução, nº de alistamento 629. Lembo examina curioso o papel, que tem tamanho de uma folha de ofício. "Olha a profissão do homem! Era negociante". E solta, certeiro: "Esse aqui era do PT!".

O que o governador não reparou foi na renda do precursor petista dos tempos do Império: parcos 300 contos de réis. Com esses ganhos, Manoel Souza era, no máximo, do PFL .

terça-feira, setembro 12, 2006

Em preto e branco

Cutuca o aro dos óculos ovais. Os olhos, apertados, brilham castanhos. Nos cantinhos, se amassam desavergonhadas rugas. Sinal dos tempos. Dentes bem alinhados. Hoje ela sorri pouco. Diz andar esquecida.

Inconformada, contesto. Peço que esqueça essa história de brancos. Duvido. Encho-a de minhas dúvidas. Ela me preenche de histórias em preto e branco. Deliciosas nuances cinzas. A vida, sem tecnicolor, brilha na cabeça dessa teimosa.

‘Viu como tu lembra de um monte de coisas?’ Ela franze a testa. Olha de soslaio para o lado. Quase lhe arranco um ‘é verdade’. Quase. A pimentinha resiste. Insiste andar esquecida.

‘Pois, como foi mesmo que tu conheceu o vô?’. Semblante radiante me responde: ‘Ah, ele trabalhava numa oficina a duas quadras do ateliê de costura. Um dia, me convidou para beliscar batatinhas com coca-cola. Sempre adorei batatinha. Principalmente as bem torradas. Aceitei. Um dia. Duas semanas. Um mês. Quarenta anos. Esperto, não?’

‘Quer dizer que a família Dias descende de batatinhas com coca-cola?‘ Ela me mira com aqueles olhinhos matreiros. Como quem se cuida para não cair em uma traquinagem de criança. Conhece bem a neta. Conheço bem a vó. Passa a língua nos lábios fininhos. E arremata: ‘Toda quarta-feira ele me pagava um sorvete de morango!’

sábado, setembro 09, 2006

Passeio

Espio tua boca com o canto dos meus grandes olhos. Tu sorris. Do alto de tuas amêndoas curiosas espreitas crianças brincando no gramado. Eu vigio-te. Vigio-me. Seguro-me. Sem coragem. De somar minha cabeça ao teu ombro. Minha mão a teus cabelos. Minha boca ao teu sorriso. Essa menina de cabelos vermelhos a teus pensamentos.

O fim de tarde faz tudo mais grave. A cada tombo do sol fica mais difícil falar daquelas coisas. Dispenso didática e métrica. Mantenho-me muda. Sobram papas na língua. Essa língua que sempre se mete onde bem entende. Agora se enrola, medrosa. Fala de tudo, menos de ti. Menos de ti, mais eu. De eu, mais tu.

Caminhamos entre as árvores. Lado a lado. Pé ante pé. Cinco centímetros e meio separam meu cotovelo do teu. Por acidente, eles se encontram. Arrepia minha nuca. Avermelha minha maçã do amor, a do rosto. Tímidos, os cotovelos se recolhem aos seguros cinco centímetros e meio.

Por descuido, imagino nossa cena de cinema. Esquetes óbvios. Num teatro simples. Unir os lábios em meio a um gole no bebedouro do parque. Roubar um beijo estalado antes de deixar-te subir no ônibus. Confessar que aquele poema eu fiz foi pra ti. E não pra outro Fulano.

Tropeço em um graveto que se atravessa em meu caminho. Lembro de esquecer meus rubros pensamentos. Abano o ar como a espantar um mosquito impertinente. Idéias de romance se dissipam floridas. Flutuam como pó de pimenta no campo. Deixam-se levar pela brisa do fim de tarde. E o sol se põe. Mais uma vez ao nosso lado. Meu. E teu. Quero-te meu. Lado.