Caxola

Idéias flutuam pela ruas da cidade. Nadam pelos ares em busca de ouvidos atentos e ansiosas por olhos curiosos. Meu prazer voluntário é capturá-las, vesti-las de sedas e traduzi-las em palavras. No Caxola, a beleza acre do cotidiano veste traje de gala.

sexta-feira, maio 19, 2006

Brincando com fogo

Aniversário na família. Salgadinho. Doce. Bolo. Velhinha. Fósforo. Fim de festa. E mamãe decide ensinar tática infalível pra desvendar um inquietante mistério: onde está o amor da sua vida? Solteiros leitores, atentem os ouvidos.

Mamãe é boa nisso. Desde que saí dos cueiros, ela se dedica e me ensinar simpatias casamenteiras. Sem sucesso, é verdade. Mas ela se esforça. Mamãe fez – e pagou – incontáveis promessas a Santo Antônio. Isso explica o fato dela viver feliz, desde os 17 anos, ao lado de um belo par de olhos verdes, leia-se papai.

Voltemos aos festejos. A experiente devota de Santo Antônio pega meia dúzia de fósforos esquecidos perto da vela de aniversário. Inicia a mística operação. Assim: acenda um fósforo. Segure na horizontal. Quando estiver queimando, encoste na chama a cabeça de um outro fósforo, apagado. Assim que os dois queimarem, vire na vertical. Os fósforos queimarão grudados, um em cima do outro. Concentre-se. Pense no amor. Quando o fogo rarear, o palito de cima vai virar carvão e pender para um lado. Em outras palavras, o palito queimado vai apontar para a direção onde está o seu grande amor.

Feito isso, ela mostra como o cotoco de fósforo, certeiro, indica a direção em que papai estava sentado, logo ali perto. Espanto geral. Fé provada, as moças da mesa passam a testar a descoberta. Uma a uma, seguem o passo-a-passo e descobrem o sentido em que apontam seus corações. Teimosa, não me arrisco.

Despedidas feitas. Sala vazia. Sorrateira, roubo a caixa de fósforos. Onde estás, coração? Risco o fósforo. Uma rajada invisível o apaga. Ora! Risco outro. Sigo a risca os ensinamentos. Tento equilibrar um fósforo no outro quando...um deles cai na toalha. Princípio de incêndio ao lado do bolo de chocolate. A labareda tímida cresce. Dou tapinhas histéricos nas chamas tentando apagá-las. Chamusco meus dedos. Missão-bombeiro cumprida, vejo o rombo que fiz na toalha. Em volta do buraco, cinzas do fósforo e do tecido. Ali adiante, pedaços de dois fósforos. Pretos. Caídos. Sem direção.

"It's like 10,000 spoons when all you need is a knife. It's meeting the man of my dreams. And then meeting his beautiful wife. And isn't it ironic... don't you think? A little too ironic.. and yeah I really do think..." [Ironic, de Alanis Morissette]

sexta-feira, maio 12, 2006

A Poeta Nua

É. Esse é um texto auto-referencial e baseado em fatos verídicos. Tudo o que eu falar diz respeito a mim mesma, menina de cabelos confusos e idéias encaracoladas que tu já conheces tão bem. Conheces? Ou será que entrastes aqui pela primeira vez? Quem és tu que me espreita com esse ar curioso sem que eu saiba? Cubro meus ombros com uma manta grossa. Quem pensas ser para olhar assim meus tornozelos? Puxo um xale até o pescoço.

Minhas maçãs do rosto se avermelham. Aperto o lábio entre os dentes, acanhada por ser observada assim, tão de perto, por alguém cujo nome sequer conheço. Abrir meu coração para ti me provoca arrepios. Não sei o que farás com as labaredas e com as pedras de gelo que lá encontrares. E se jogares princípios de incêndio em folhas secas? Ou fizeres pesar meus cubos de neve? O que poderia eu fazer para reagir a tais insultos? Nada. Estou nua. Estou à mostra para quem digita o endereço ali de cima. Isso assusta.

Assusta tanto quanto encontrar um desconhecido no meio da sala ao chegar em casa. Sentado com os pés em cima da mesinha de centro. Olhando os quadros surrealistas que pendem das paredes, enquanto me rouba um cigarro. Assusta ver alguém entrar assim em meus pensamentos. De onde vieram tantas pessoas bater na minha porta? Interessados em minhas palavras rimadas, esses transeuntes deixam bilhetes, escrevem cartas, esquecem pratos na pia da cozinha.

Varro os rastros dos desconhecidos que vieram jantar sem aviso prévio. E sento na poltrona. Despida de panos. Nua de máscaras. Pra pensar em mais um texto. Fisgo um par de grandes olhos a me mirar. Cogito me esconder atrás de uma almofada. Bobagem. Para que servem as palavras se não para serem paridas e lidas? Para que escrevo senão para mostrar-me?

Entre, camarada. Fique a vontade. A casa é sua.

terça-feira, maio 09, 2006

Ódio. E por que não?

Em raro dia de folga matinal, abro os olhos com manha. Arrasto meu pijama-de-ursinhos da cama para o sofá. Com o pote de iogurte na mão e o pão com margarina equilibrado no joelho, ligo a TV. Uma neblina insiste em embaçar meus olhos, mas já escuto bem. A cinqüentona apresentadora de voz slow motion recita versos adocicados:

"Pense que todos os sentimentos ruins, negativos, atingem o seu coração, mancham o seu espírito, trazem tristeza, e até doenças. O melhor é deixar passar, relevar, perdoar."

No programa de culinária, a receita da felicidade cor-de-rosa. Tape com seda florida seu lado feio. Enterre com pás de ouro em pó seus maus pensamentos. Gurus pré-fabricados pregam a complacência absoluta. Amar é pop. Nada é mais in do que um bom coração. Em meio a tanto pão-de-mel, perde-se a dor. A mágoa. A ferida. A indignação.

Sentada em meio a almofadas e calçando meias coloridas, sei do meu lado mau. Ainda com a colher do iogurte presa entre os dentes, lembro do que diz minha vó: “Amor e ódio, sentimentos irmãos”. E acredito em cada palavra do que a abuelita diz. Creio e sustento: se pensar no Fulano me causa borboletas no estômago, pensar em Sicrano é um soco no mesmíssimo lugar.

Arranco um naco do pão. A margarina escapa para os cantos da minha boca. Alguns tenebrosos sentimentos se ajeitam debaixo de minha blusa de moletom. Malévolos pensamentos se enrolam em meus caracóis castanhos. Respiro fundo. Meu coração, de amor e de ódio, suspira uma certeza: melhor assim! Raiva amordaçada arranha o esôfago e sufoca o cérebro. Felicidade de boutique apodrece mais rápido que queijo de minas fora da geladeira. Bondade resignada? Só com coração de pedra, cara amiga da TV.